Eu quero aqui trazer algumas reflexões minhas sobre esses dois filmaços do Scorsese: Goodfellas e Casino
Na minha opinião esses são clássicos atemporais
e esses dois filmes têm aspectos em comum um com o outro e que, para mim, mostram
também um pouco do próprio caráter do diretor, Martin Scorsese.
Goodfellas é um
filme sobre um gângster. Baseado em uma história real, o filme retrata a
realidade de membros da máfia durante os anos 60 nos Estados Unidos da América.
Eu acho muito bom esses tropos de três companheiros, como no filme Cidade de
Deus com o “trio ternura”. Eles são Tommy, Henry e Jimmy.
Todos ali são baseados em pessoas reais e os
eventos que se desdobram também.
A minha reflexão vai se basear muito nesses
personagens.
O Henry desde pequeno nunca viu outro caminho
que não fosse a máfia. Antes de sua adolescência terminar ele já sabia muito
bem o que que queria com sua vida; e ele não entra nessa vida com medo, receio
ou com qualquer escrúpulo, a máfia vem para ele tão naturalmente como a
puberdade. Ele sobe na hierarquia conforme vai ganhando a confiança dos mais
velhos e a sua responsabilidade e poder, obviamente, crescem juntos. Ele vive
uma vida relativamente sossegada e consegue manter seus esquemas e seus roubos
sem ser incomodado pela polícia, que é facilmente apaziguada através de
suborno.
Depois de muita insistência da parte de seu
amigo Tommy, o Henry acaba concordando sair em um encontro duplo com Tommy só
para não desagradar o amigo, porém na segunda vez o Henry resolve que tinha
algo melhor para fazer e não aparece no jantar e o “date” dele, que é a Karen,
fica lá sozinha segurando vela pro Tommy e a outra judia que estava com ele. A
Karen fica furiosa e vai até o restaurante italiano onde ficavam os mafiosos e
ela confronta o Henry diante ali de vários mafiosos, e nesse momento ele enxerga
nela uma mulher selvagem, com paixão, com fogo, e isso o atrai.
Com segurança eu posso dizer esses personagens
do Scorsese são bem movidos pelo que Nietzsche chamaria “vontade de potência”. Eu
não me atreveria dizer isso se o Platinho já não tivesse feito essa análise com
o Lobo de Wallstreet. Na realidade deles, observa-se que depois de um tempo o
que começa a valer mesmo não é o dinheiro, e sim o poder. O poder de se livrar
da polícia; o poder que comanda respeito dos outros; o poder de influência.
Quando Henry vê Karen, ele vê uma pessoa com poder, e não apenas isso, ele vê
também um desafio. Nietzsche que diz que o homem gosta de um jogo, e não existe
jogo mais perigoso que a mulher. Portanto, para Henry aquele seria mais um jogo.
Pode aí observar como as apostas e os jogos são
onipresentes na vida dessas pessoas. O momento que eles se sentam ali para
jogar pôker, esse é o momento em que eles transformam a própria realidade em
síntese, pois os jogos de azar resumem bem simbolicamente a vida deles; um
símbolo do que eles perseguem diariamente, como se ali aquela mesa de pôker
fosse o altar onde a hóstia seria consagrada na missa
A busca que eles têm por mais e mais daquilo
vai além de ininterrupta, ela é uma busca religiosa.
Voltando aqui ao Henry, pode observar como as
mulheres com quem ele se envolve são desafios que escalaram de nível. As
goomas, que são as amantes, já são um elemento comum na vida dele, porém ele
resolve dificultar as coisas quando ele experimenta brincar de casinha com uma
das amantes, dá um apartamento maneiro para ela, e sem receios começa a passar
mais tempo com a amante do que com a esposa. Depois, ele se atrai por uma das
amigas da amante, a que mais tinha aparência de cheiradora ali. E daí ele
termina com a amante anterior e resolve ficar com a viciada em drogas.
O filme tem essa redpill sobre a natureza feminina.
No caso da Karen, quando o Henry pede para ela esconder a arma que estava
coberta de sangue, ela admite que “that turned me on”. A Karen é mais uma que será regida pela vontade de potência, sem
lastro moral. Pois a liberdade dela vem através da entrega à sua natureza
feminina profana, que a faz escolher não o bom esposo judeu e certinho, e sim o
badboy gângster italiano. Se formos aplicar a vontade de potência do Nietzsche,
Karen e Henry poderiam ser considerados, nesse sentido, aparentemente mais
livres que a maioria das pessoas, pois deixam o seu lado animal à solta.
O Henry poderia continuar tendo uma vida
extremamente sossegada. Porém, mesmo sendo proibido por Paulie, ele resolve
vender uma droga que ele não deveria vender.
Tem algum filósofo que diz que o homem é uma
máquina de desejos insaciável. O Henry não consegue deter, aliás, nem tenta,
deter seus desejos, e ele segue em frente obliterando tudo, até a si mesmo.
Jimmy e Tommy vão na mesma direção, deixando um
rastro talvez até mais destrutivo.
O Tommy simplesmente mata todo mundo que vê
pela frente, e já nem tenta controlar seu humor.
Jimmy chega a conclusão que em vez de pagar as
pessoas o dinheiro que ele deve ele pode simplesmente matá-las e ficar com o
dinheiro kkk.
Uma coisa que os filmes do Scorsese
definitivamente não fazem é atribuir julgamentos morais em cima dos
personagens, talvez por isso essa cena no júri em que o Henry quebra a quarta
parede e meio que chama a nós, a audiência, para julgar o caso dele. Uma coisa
que particularmente esse filme Goodfellas vai fazer, é você ponderar se houve
alguma redenção para o Henry, pois no final da vida ele parece na verdade
bastante insatisfeito com a segunda chance que ele teve. E essa para mim é uma
das mensagens mais fortes de goodfellas, que é aquela coisa de que, sim, você
pode acreditar que foi perdoado por ter levado a vida que levou, mas a vida que
você levou não te perdoa tão facilmente. As marcas, as cicatrizes da vida no
glamour da máfia se veem claras, não só no rosto cheirado de coca do Henry, mas
na infelicidade dele com uma vida normal.
Agora para refletir um pouco sobre o filme
Casino, eu queria comentar que o filme inicia com a música da “Paixão segundo
São Mateus” de Johann Sebastian Bach e que essa história, a história que a
música está contando, que é a paixão de Cristo, serve como um cenário de
segundo plano dos eventos que vão desenrolar no filme. Isso na minha visão, é
claro, eu não estou pegando essa opinião de nenhum crítico.
Pois bem, dizer que os filmes do Scorsese
constantemente fazem uso do Sagrado e do Profano não seria nada de novo. E
mesmo assim eu quero apontar para a presença de alguns elementos religiosos e
profanos que ajudarão a trazer um modo diferente de ver o filme. Quando o Ace
“Rothstein” chega em Las Vegas, uma coisa que ele comenta é que Las Vegas faz
para ele o que Lourdes faz para deficientes e cadeirantes. Aqui ele se refere
aos milagres de Nossa Senhora de Lourdes, na França. Só que observem o
seguinte: enquanto Lourdes cura as enfermidades FÍSICAS das pessoas, Las Vegas
cura as enfermidades ESPIRITUAIS do Ace Rothstein. Ali ele deixa para trás o
passado, as dívidas, as preocupações, as pessoas que ele passou a perna. Las
Vegas cura isso. Para Ace, Las Vegas é o ápice de sua carreira, mas a cidade
deve ser respeitada e há bastante trabalho para ser feito. Já o seu amigo Nicky
vê Las Vegas com outros olhos; ele a vê como intocada, esperando alguém para
vir e dominá-la.
Nicky é o defensor de Ace Rothstein, é ele quem
age nas ruas para preservar o mundo etéreo do Casino Nicky é o pontífice – mas
é também o arquétipo perfeito do gângster: se ele quer algo, ele toma; se ele
não gosta de algo, ele destrói, e isso passa cada vez mais a ser o mantra da
sua vida. Quando ele vê que Ace Rothstein está abandonando essa forma de agir ele
pergunta ao Ace “don’t you have balls?” “Você não tem culhões?”. Ali nessa
cena, Ace Rothstein é o homem que, como Nietzsche diria, estaria abraçando a
moralidade dos fracos, se escondendo do perigo e enquanto isso dedicando-se a ajudar
a sua pecadora,– que é a ginger. E Nicky
é a besta, é o animal inconsequente que vive sob as próprias regras. Assim como
em Mean Streets, também do Scorsese, eu acho que seria seguro afirmar que Ace
também sofre do savior complex, o complexo de salvador. No entanto, sem precisar
examinar muito à fundo, notam-se em alguns personagens do Scorsese qualidades
bastante centradas na figura de Jesus Cristo, como no caso do Henry em
Goodfellas que sempre age como intercessor, tentando evitar violência
desnecessária; do trio de gângsters ele é o mais sensato e também o único que
consegue ter compaixão. Ace Rothstein, porém, não tem a disposição de absolver
nem mesmo o filho do Senador, aquele rapaz meio lerdo que trabalhava do Casino,
e indo contra seus próprios interesses, ele expulsa o rapaz do seu reino, e não
cede nem mesmo diante das súplicas humildes do comissário.
No Casino, para mim, um dos momentos fatais é
quando Ace Rothstein resolve confirmar a confiança de Ginger três vezes,
sendo que ele deveria na verdade ter feito isso com seu amigo, Nicky, com o
qual ele estava perdendo o contato. E ele também confia a ela a CHAVE para as
suas jóias preciosas que ficam no guardadas no banco. Inclusive um momento no
filme, um dos poucos, que comove é uma cena do Nicky na escada arrependido de
ter se envolvido com a Ginger, e o arrependimento dele ali para mim parece ser
excepcionalmente sincero.
Observa-se tanto em Goodfellas como em Casino
um movimento de ascensão e queda dos protagonistas, em ambos por sua própria
culpa, sendo que aquilo que justamente serviu como o impulso inicial para
elevá-los, é também o motivo de sua queda. Só que em Casino, com o Ace
Rothstein, eu não diria que seria uma queda e sim uma elevação.
Voltando ao tema da música que abre o filme,
nós podemos observar que conforme se aproxima o final, acontece uma crucificação
do Ace Rothstein na mídia americana, ele passa de ser um homem louvado pela
sociedade a um pária total, que vai ser rejeitado pelos amigos, por Nicky, ele também
é rejeitado pelos chefes (que se assentam nessa espécie de paraíso, afastado dos
problemas mais mundanos do Casino), e pela esposa, a pecadora que ele tentou e
não conseguiu redimir. Porém, no final de tudo, ele retorna ao ponto onde
começou, com as apostas – e ali está a redenção dele, nos jogos de azar. Ele
não é Adão que foi expulso do paraíso, mas sim alguém que morreu e ressuscitou.
Da mesma
forma que um outro personagem do Scorsese, o Jake Lamotta, um homem-animal,
encontra sua redenção no ringue de boxe, é nas apostas que Ace Rothstein
encontra seu recomeço.
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