Rindo da morte

A fortuna sorriu para mim, e ela tinha esse rosto.   Começo da tradução do artigo de Jean Elizabeth Seah https://ignitumtoday.com/...

Análise e reflexões sobre os filmes Casino e Goodfellas, de Martin Scorsese

Eu quero aqui trazer algumas reflexões minhas sobre esses dois filmaços do Scorsese: Goodfellas e Casino

Na minha opinião esses são clássicos atemporais e esses dois filmes têm aspectos em comum um com o outro e que, para mim, mostram também um pouco do próprio caráter do diretor, Martin Scorsese.

Goodfellas é um filme sobre um gângster. Baseado em uma história real, o filme retrata a realidade de membros da máfia durante os anos 60 nos Estados Unidos da América. Eu acho muito bom esses tropos de três companheiros, como no filme Cidade de Deus com o “trio ternura”. Eles são Tommy, Henry e Jimmy.

Todos ali são baseados em pessoas reais e os eventos que se desdobram também.

A minha reflexão vai se basear muito nesses personagens.

O Henry desde pequeno nunca viu outro caminho que não fosse a máfia. Antes de sua adolescência terminar ele já sabia muito bem o que que queria com sua vida; e ele não entra nessa vida com medo, receio ou com qualquer escrúpulo, a máfia vem para ele tão naturalmente como a puberdade. Ele sobe na hierarquia conforme vai ganhando a confiança dos mais velhos e a sua responsabilidade e poder, obviamente, crescem juntos. Ele vive uma vida relativamente sossegada e consegue manter seus esquemas e seus roubos sem ser incomodado pela polícia, que é facilmente apaziguada através de suborno.

Depois de muita insistência da parte de seu amigo Tommy, o Henry acaba concordando sair em um encontro duplo com Tommy só para não desagradar o amigo, porém na segunda vez o Henry resolve que tinha algo melhor para fazer e não aparece no jantar e o “date” dele, que é a Karen, fica lá sozinha segurando vela pro Tommy e a outra judia que estava com ele. A Karen fica furiosa e vai até o restaurante italiano onde ficavam os mafiosos e ela confronta o Henry diante ali de vários mafiosos, e nesse momento ele enxerga nela uma mulher selvagem, com paixão, com fogo, e isso o atrai.

Com segurança eu posso dizer esses personagens do Scorsese são bem movidos pelo que Nietzsche chamaria “vontade de potência”. Eu não me atreveria dizer isso se o Platinho já não tivesse feito essa análise com o Lobo de Wallstreet. Na realidade deles, observa-se que depois de um tempo o que começa a valer mesmo não é o dinheiro, e sim o poder. O poder de se livrar da polícia; o poder que comanda respeito dos outros; o poder de influência. Quando Henry vê Karen, ele vê uma pessoa com poder, e não apenas isso, ele vê também um desafio. Nietzsche que diz que o homem gosta de um jogo, e não existe jogo mais perigoso que a mulher. Portanto, para Henry aquele seria mais um jogo.

Pode aí observar como as apostas e os jogos são onipresentes na vida dessas pessoas. O momento que eles se sentam ali para jogar pôker, esse é o momento em que eles transformam a própria realidade em síntese, pois os jogos de azar resumem bem simbolicamente a vida deles; um símbolo do que eles perseguem diariamente, como se ali aquela mesa de pôker fosse o altar onde a hóstia seria consagrada na missa

A busca que eles têm por mais e mais daquilo vai além de ininterrupta, ela é uma busca religiosa.

Voltando aqui ao Henry, pode observar como as mulheres com quem ele se envolve são desafios que escalaram de nível. As goomas, que são as amantes, já são um elemento comum na vida dele, porém ele resolve dificultar as coisas quando ele experimenta brincar de casinha com uma das amantes, dá um apartamento maneiro para ela, e sem receios começa a passar mais tempo com a amante do que com a esposa. Depois, ele se atrai por uma das amigas da amante, a que mais tinha aparência de cheiradora ali. E daí ele termina com a amante anterior e resolve ficar com a viciada em drogas.

O filme tem essa redpill sobre a natureza feminina. No caso da Karen, quando o Henry pede para ela esconder a arma que estava coberta de sangue, ela admite que “that turned me on”. A Karen é mais uma que será regida pela vontade de potência, sem lastro moral. Pois a liberdade dela vem através da entrega à sua natureza feminina profana, que a faz escolher não o bom esposo judeu e certinho, e sim o badboy gângster italiano. Se formos aplicar a vontade de potência do Nietzsche, Karen e Henry poderiam ser considerados, nesse sentido, aparentemente mais livres que a maioria das pessoas, pois deixam o seu lado animal à solta.

O Henry poderia continuar tendo uma vida extremamente sossegada. Porém, mesmo sendo proibido por Paulie, ele resolve vender uma droga que ele não deveria vender.

Tem algum filósofo que diz que o homem é uma máquina de desejos insaciável. O Henry não consegue deter, aliás, nem tenta, deter seus desejos, e ele segue em frente obliterando tudo, até a si mesmo.

Jimmy e Tommy vão na mesma direção, deixando um rastro talvez até mais destrutivo.

O Tommy simplesmente mata todo mundo que vê pela frente, e já nem tenta controlar seu humor.

Jimmy chega a conclusão que em vez de pagar as pessoas o dinheiro que ele deve ele pode simplesmente matá-las e ficar com o dinheiro kkk.

Uma coisa que os filmes do Scorsese definitivamente não fazem é atribuir julgamentos morais em cima dos personagens, talvez por isso essa cena no júri em que o Henry quebra a quarta parede e meio que chama a nós, a audiência, para julgar o caso dele. Uma coisa que particularmente esse filme Goodfellas vai fazer, é você ponderar se houve alguma redenção para o Henry, pois no final da vida ele parece na verdade bastante insatisfeito com a segunda chance que ele teve. E essa para mim é uma das mensagens mais fortes de goodfellas, que é aquela coisa de que, sim, você pode acreditar que foi perdoado por ter levado a vida que levou, mas a vida que você levou não te perdoa tão facilmente. As marcas, as cicatrizes da vida no glamour da máfia se veem claras, não só no rosto cheirado de coca do Henry, mas na infelicidade dele com uma vida normal.


Agora para refletir um pouco sobre o filme Casino, eu queria comentar que o filme inicia com a música da “Paixão segundo São Mateus” de Johann Sebastian Bach e que essa história, a história que a música está contando, que é a paixão de Cristo, serve como um cenário de segundo plano dos eventos que vão desenrolar no filme. Isso na minha visão, é claro, eu não estou pegando essa opinião de nenhum crítico.

Pois bem, dizer que os filmes do Scorsese constantemente fazem uso do Sagrado e do Profano não seria nada de novo. E mesmo assim eu quero apontar para a presença de alguns elementos religiosos e profanos que ajudarão a trazer um modo diferente de ver o filme. Quando o Ace “Rothstein” chega em Las Vegas, uma coisa que ele comenta é que Las Vegas faz para ele o que Lourdes faz para deficientes e cadeirantes. Aqui ele se refere aos milagres de Nossa Senhora de Lourdes, na França. Só que observem o seguinte: enquanto Lourdes cura as enfermidades FÍSICAS das pessoas, Las Vegas cura as enfermidades ESPIRITUAIS do Ace Rothstein. Ali ele deixa para trás o passado, as dívidas, as preocupações, as pessoas que ele passou a perna. Las Vegas cura isso. Para Ace, Las Vegas é o ápice de sua carreira, mas a cidade deve ser respeitada e há bastante trabalho para ser feito. Já o seu amigo Nicky vê Las Vegas com outros olhos; ele a vê como intocada, esperando alguém para vir e dominá-la.

Nicky é o defensor de Ace Rothstein, é ele quem age nas ruas para preservar o mundo etéreo do Casino Nicky é o pontífice – mas é também o arquétipo perfeito do gângster: se ele quer algo, ele toma; se ele não gosta de algo, ele destrói, e isso passa cada vez mais a ser o mantra da sua vida. Quando ele vê que Ace Rothstein está abandonando essa forma de agir ele pergunta ao Ace “don’t you have balls?” “Você não tem culhões?”. Ali nessa cena, Ace Rothstein é o homem que, como Nietzsche diria, estaria abraçando a moralidade dos fracos, se escondendo do perigo e enquanto isso dedicando-se a ajudar a sua pecadora,– que é a ginger.  E Nicky é a besta, é o animal inconsequente que vive sob as próprias regras. Assim como em Mean Streets, também do Scorsese, eu acho que seria seguro afirmar que Ace também sofre do savior complex, o complexo de salvador. No entanto, sem precisar examinar muito à fundo, notam-se em alguns personagens do Scorsese qualidades bastante centradas na figura de Jesus Cristo, como no caso do Henry em Goodfellas que sempre age como intercessor, tentando evitar violência desnecessária; do trio de gângsters ele é o mais sensato e também o único que consegue ter compaixão. Ace Rothstein, porém, não tem a disposição de absolver nem mesmo o filho do Senador, aquele rapaz meio lerdo que trabalhava do Casino, e indo contra seus próprios interesses, ele expulsa o rapaz do seu reino, e não cede nem mesmo diante das súplicas humildes do comissário.

No Casino, para mim, um dos momentos fatais é quando Ace Rothstein resolve confirmar a confiança de Ginger três vezes, sendo que ele deveria na verdade ter feito isso com seu amigo, Nicky, com o qual ele estava perdendo o contato. E ele também confia a ela a CHAVE para as suas jóias preciosas que ficam no guardadas no banco. Inclusive um momento no filme, um dos poucos, que comove é uma cena do Nicky na escada arrependido de ter se envolvido com a Ginger, e o arrependimento dele ali para mim parece ser excepcionalmente sincero.

 

Observa-se tanto em Goodfellas como em Casino um movimento de ascensão e queda dos protagonistas, em ambos por sua própria culpa, sendo que aquilo que justamente serviu como o impulso inicial para elevá-los, é também o motivo de sua queda. Só que em Casino, com o Ace Rothstein, eu não diria que seria uma queda e sim uma elevação. 

Voltando ao tema da música que abre o filme, nós podemos observar que conforme se aproxima o final, acontece uma crucificação do Ace Rothstein na mídia americana, ele passa de ser um homem louvado pela sociedade a um pária total, que vai ser rejeitado pelos amigos, por Nicky, ele também é rejeitado pelos chefes (que se assentam nessa espécie de paraíso, afastado dos problemas mais mundanos do Casino), e pela esposa, a pecadora que ele tentou e não conseguiu redimir. Porém, no final de tudo, ele retorna ao ponto onde começou, com as apostas – e ali está a redenção dele, nos jogos de azar. Ele não é Adão que foi expulso do paraíso, mas sim alguém que morreu e ressuscitou.

 Da mesma forma que um outro personagem do Scorsese, o Jake Lamotta, um homem-animal, encontra sua redenção no ringue de boxe, é nas apostas que Ace Rothstein encontra seu recomeço.